BOITE KISS: TRAUMA E LUTO COMPLICADO
Por José Paulo Fiks
O luto e o trauma se encontraram na noite do incêndio da boate Kiss.
Nesta semana finalmente tem início o julgamento dos apontados como responsáveis por esse evento terrível que há quase nove anos levou 242 vidas de jovens universitário da cidade de Santa Maria, Rio Grande do Sul. A mesma tragédia lançou abruptamente pais, parentes, amigos e toda uma cidade em um estado especial de luto.
Foram 636 sobreviventes que passaram pelo grande potencial para o Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT). Familiares e amigos também fazem parte desta estatística. Profissionais de primeiros atendimentos e trabalhadores da saúde que participaram do resgate e acompanhamento inicial das vítimas também ficaram vulneráveis a vários quadros pós-traumáticos.
Com o julgamento dos acusados, todos os sobreviventes e testemunhas passam pela revisita involuntária à data traumática e tornam-se vulneráveis para uma retraumatização ou piorarem sintomas se ainda estiverem em tratamento. O acompanhamento em saúde mental deve ser redobrado. A abordagem pela mídia e redes sociais deve ser humanizada e cautelosa.
O luto saudável se manifesta pela apropriação progressiva dos afetos após a morte de alguém estimado. É uma construção de sentido após uma perda significativa, um momento de transformação e de um ritual necessário.
Uma experiência traumática refere-se a qualquer vivência intensa frente à ameaça de morte que impede o psiquismo de alcançar uma elaboração simbólica do acontecimento. É um estado que impede um indivíduo de funcionar, apontando para uma condição psicológica permanente de uma perda.
Os lutos pós-traumáticos geralmente surgem por perdas em que o processo de luto é impossibilitado por dois motivos: a experiência traumática e a perda de uma pessoa querida pelo mesmo evento traumático.
Eventos catastróficos como a tragédia da boate Kiss são possíveis causadores de traumas e lutos complicados. Os trabalhos de salvamento, conforto aos sobreviventes e suas famílias e a mobilização das equipes de atendimento médico e em saúde mental foram inéditas durante e após a tragédia da casa noturna. Os atendimentos continuam até hoje. Comunidades que se apresentam integradas podem se prevenir contra piores situações de potencial traumático e, assim diminuir as chances para o luto complicado.